México, Yucatan - A primeira aventura de bicicleta

03.07 - A primeira viagem de bicicleta (Yucatan - Mexico)

Cancun, Aeroporto de 7 de Marco 2007 – o regresso

Dei um beijo e um abraço demorado no meu companheiro de viagem e melhor amigo, disse-lhe até breve e não me voltei para trás, avancei para as portas de embarque com um vórtice esvaziante que me empurrava na direcção do avião embora tudo no meu corpo se tentasse ancorar ao país e ao amigo que agora deixava. Atravessei a noite e de manhã acordei em Gatwick com um sol frio de um grau.- o sorriso irónico desenhou-se na minha face.Aeroporto de Cancun 27 de Fevereiro 2007 – o reencontroEstavam ainda os meus poros a experienciar o êxtase provocado pelo calor tropical Mexicano quando senti, na minha pele branca da ausência de sol, o abraço quente apertado, e a voz suave do Nuno ‘bem-vinda’. As pontes do tempo desapareceram, os meses de ausência desmoronaram-se e a distância de um oceano e muitos mil quilómetros afundaram-se por um ralo que duraria 14 dias antes de voltar a encher.
O destino Cancun foi determinado pelo vôo barato. Cancun e quase toda a costa da Península do Yucatan que adquiriu o nome pomposo - cortesia do Marketing Turístico - de Riviera Maia, é para mim igual a qualquer outra estância de resorts em qualquer parte do mundo e nem as águas cristalinas me deixaram muito impressionada. Vejo tudo isto como um acto de prostituição consentida, as selvas virgens e as praias imaculadas foram vendidas em troca de luxuosos conjuntos de arquitectura cimentosa que escondem dentro das suas paredes milhares de quartos cheios de camas uniformizadas, salas de massagens para corpos de turistas, restaurantes com comidas híbridas mundiais. Fora destas paredes a realidade é feita de casas de palha, que a noite invade com redes onde se descansa o corpo depois do dia de trabalho a limpar o resort, a cortar a relva do resort, a servir comida no resort.Que sentirão estas pessoas quando à noite chegam a casa? Compararão confortos? Questionarão diferenças? O constante som grave e alto que esvoaça dos rádios que ouvem respondem-me que quaisquer que sejam as suas questões existenciais o calor existente em suas almas aquece tanto ou mais que o sol caribenho, e por mais um dia a vida continuará a ser como sempre foi.

A saga do bacalhau

Ser Português. Quantas e quantas linhas foram escritas sobre o ser Português? Eu acrescentarei mais algumas. De como atravessei cerca de 70 quilómetros deste país húmido cheio de selvas e ruínas Maias com um garrafão de 5 litros de água a demolhar umas postas de bacalhau salgado importadas do Reino Unido, a cavalo na minha ‘burra mexicana’. O esforço resultou num belo Bacalhau à Bráz cozinhado numas bancadas de um campo de futebol com erva a dar pelos joelhos e um delicioso Bacalhau à Espanhola saboreado ao pequeno-almoço no nosso acampamento numa pedreira abandonada. Os locais olhavam estupefactos pensando que carregávamos uma cobra ou um bicho malcheiroso qualquer, seguramente para alguma feitiçaria ou coisa semelhante. Recordo a cara de uma rapariga, empregada num restaurante deserto de beira de estrada em que parámos, quando o Nuno lhe entregou o garrafão e pediu que lhe mudasse a água que com os solavancos da burra e o sol tinha já um cheiro bastante acentuado.O Nuno conta-me de como cada ciclista tem as suas peculiaridades relativamente a comida. Análise feita, parece-me que como Portugueses o valor que damos à alimentação e a determinados ingredientes é levado a um expoente máximo sobretudo quando se está longe a viajar sem grandes confortos. A existência durante estas cavalgadas passa a determinar-se tão simples e complexamente pelo menu que se vai preparar para as refeições do dia bem como toda a sua logística, sabendo-se de antemão que o sucesso da jornada depende em parte do quão satisfeito se está com aquilo que se come.
Nas malas da burra do Nuno cavalgaram também umas chouriças que perfumaram ‘irresistivelmente’ as suas roupas e foram a base para um arroz de feijão e chouriço, que eu modestamente descreveria como fenomenal acompanhado por umas tequillas com limas, estávamos na cidade colonial de Valladolid onde nos demos ao luxo de pernoitar numa pensão com cozinha para confeccionarmos os nossos últimos ingredientes Portugueses com a devida pompa e circunstância.Ode ao meu corpoDecidir ir ao encontro do Nuno e pedalar uma burra foi só a consequência de esta ser a forma de transporte escolhida por ele, mas a cavalo numa burra real ou numa burra puxada com a força das minhas pernas a minha percepção geral é que o importante é ir. Realmente não me ocorreu que não só havia muitos anos que não andava de bicicleta, e que sou uma pessoa muito pouco dada a extremos físicos de esforço, mas que raio, estava determinada a não sofrer por antecipação e a ver quanto o meu corpo estava preparado a surpreender-me. A surpresa foi grande.Os Deuses Maias abençoaram a minha viagem com estradas planas, aldeias fora das rotas turísticas onde os descendentes Maias ainda ilustram o quotidiano Mexicano nos seus vestidos coroados de flores, os seus sorrisos pueris, a sua língua exótica que te abraça os ouvidos mesmo quando não os entendes, as grutas misteriosas conhecidas localmente como Cenotes que se presentearam durante a nossa pedalada como turquesas e topázios refrescantes de águas cristalinas – a todo este manjar dos sentidos o meu corpo presenteou-me com uma energia desconhecida e uma vontade imparável de pedalar mais e mais, ver mais e mais. Tinha descoberto uma nova paixão – a paixão pelo ciclismo!

Dos sorrisos aos sabores – uma viagem pela minha infância

Proust tornou cliché a lembrança da infância com o associar do cheiro das madalenas. Para mim o México foi uma ‘madalena’ constante que a cada contacto a cada experiência me transportava à minha infância. Saudosismo? Claro, afinal sou Portuguesa. Na simplicidade da escolha ao entrar numa mercearia onde tudo o que necessitas para sobreviver se encontra nas prateleiras poeirentas e na curiosidade e amabilidade das pessoas que te servem. A vida assim feita de poucas escolhas de consumo tem um equilíbrio inesperado. Ali longe dos longos corredores de hipermercado que te dão ansiedade só por teres de escolher entre 10 marcas diferentes de arroz, 3 pelo menos com vitaminas adicionadas e outras 5 que demoram menos de 3 minutos a cozer. Ali onde não és ignorado e as pessoas te olham com curiosidade e te perguntam de onde vens e para onde vais. Ali onde os produtos ainda sabem ao que devem saber sem meias calorias ou zero de gorduras insaturadas. As velhas marcas de Nestum, Nescafé, o chocolate Abuelita a versão mexicana do chocolate Todi, umas bolachas de canela que me transportaram aos meus dias de parque de campismo. As contas feitas no canto do papel de embrulho, as batatas pesadas numa balança ferrugenta, uma porta aberta nos fundos onde se antevê a intimidade de um lar.

Quando recordo as grandes pirâmides que visitei, silenciosas de vida real, ou a praias de postal sinto que a beleza se encontra em todo o lado não só nas grandes criações humanas e naturais de milénios como também na beleza do quotidiano e de como cada um se adapta àquilo que a vida lhe vai atirando construindo o arco-irís humano que dá cor a este mundo que vou tendo a sorte de calcorrear.Mensagem na garrafaNum dos últimos dias paramos para almoçar numa praia deserta com todos os requisitos de paradisíaca não fosse o lixo lhe atapetava as areias aveludadas. Este lixo é uma constante nas praias desertas do México, o mar devolve às aureolas de pureza, o lixo que lhe é derramado…No meio de todo este lixo estava uma garrafa vazia com rolha, o Nuno agarrou na garrafa, numa caneta e papel e deu-me para escrever uma mensagem. Pois seja essa mensagem feita desejo, um facto tornado realidade – que carregue essa garrafa a porta para as muitas mais viagens que sei que ainda tenho para fazer e que algumas delas possam ser na companhia do homem que me mostrou que os únicos impossíveis que existem são os que te impões a ti mesmo!

México, Península do Yucatan, 12 de Março 2006
Joana Oliveira