Bolívia, de Uyuni à Laguna Verde - relatos dos dias mais fantásticos da viagem, parte II

Estive 10 dias sem tomar banho, não talvez tenham sido 11. Chego a Uyuni sentindo-me algo abaixo da minha condição humana, o uso diário de toalhetes provou ser insuficiente para estabelecer um grau mais aceitável de limpeza pessoal. Ficámos alojados no Hotel Avenida já que aí se encontrava o António Queirós, aventureiro Português a percorrer o continente Americano na sua moto. Inspeccionei com todo o cuidado os chuveiros compartidos que aí havia, pareceram-me aceitáveis; para alguém que quase esquecia o significado da palavra duche, umas gotas de água semi aquecida a jorrarem pela cabeça de um aparelho eléctrico que invariavelmente dava choques, pareceram razoáveis, mas seria por pouco tempo, já que com confortos adquiridos rapidamente nos tornamos selectivos, e a pouca pressão da água, a incapacidade do dito aparelho em efectuar eficientemente as suas funções, adicionados ao passeio pelo pátio frio do hotel para chegar aos duches tornaram a tarefa de me duchar fastidiosa.


Um dos assustadores chuveiros eléctricos


Além disso, nesta parte da Bolívia era a época mais fria do ano (Junho), e alojamento com aquecimento não só é difícil de encontrar como, quando existente, se paga a preço de ouro - o meu orçamento não tolerava tal extravagância de forma que não tive alternativa se não dormir vestida e embrulhada a um cobertor adiccionado a toda a roupa que já existia na cama. O Hotel Avenida ficou marcado nos anais da minha memória como o hotel mais frio em que alguma vez pernoitei (é quase anedótico contar que uma noite registámos 6 graus debaixo dos lençóis e de como os líquidos congelavam mesmo dentro do quarto).

Vestida com as últimas peças de roupa que tinha lavadas e com uma fome descomunal fomos, eu o Nuno e o Antuco - o António, em busca das especialidades gastronómicas de Uyuni que infelizmente eram parcas e caras. Uyuni, a 3670 metros com 15.600 habitantes, é um local algo estranho. Capital de província, foi em tempos um centro mineiro de grande importância nas primeiras décadas do século XX, onde chegaram aventureiros ambiciosos em busca de riquezas. A flutuação no preço dos minerais foram reduzindo a exploração mineira e a importância da cidade. Agora é uma urbe poeirenta e desolada, porta de entrada dos milhares de mochileiros que aí chegam em busca de um tour que os leve ao Salar de Uyuni e às lagunas do Altiplano.



Existem cerca de 80 agências de viagem como consequência desta procura. No seu centro há uma praça, uma estação de comboios, existem também alguns mercados e um cemitério de locomotivas onde se podem tirar fotos interessantes e deambular imaginando os tempos idos do auge ferroviário e as histórias que contam aquelas máquinas agora ferrugentas e silenciosas.




Na Bolívia, e um pouco por todo o altiplano, celebra-se a noite de São João no dia 21de Junho, mas ao contrário de Portugal, essa noite é considerada a noite mais fria do ano. As fogueiras ou fogatas, iluminavam, aqueciam e ardiam em todas as ruas como estrelas de um céu virado ao contrário. Em redor dessas fogueiras iam-se juntando famílias, amigos e vizinhos que aproveitavam as celebraçoes pra enganar o frio. Nós juntamo-nos a um grupo de jovens à volta da sua fogata ao lado do nosso hotel, trabalhavam para diferentes companhias de viagem e, apesar de não sermos potenciais clientes, acolheram-nos de braços abertos, deram-nos informação valiosa sobre a etapa que queríamos fazer nos próximos dias, partilharam a sua garrafa de Singani (aguardente nacional Boliviana) e levaram-nos para um final de noite surreal (daquilo que posso recordar) num barracão que servia de discoteca ás centenas de locais que dançavam ao som de cumbias cantadas ao vivo e bebendo copiosas quantidades de álcool. A coisa era tão bizarra que as bebidas não se compravam aos copos mas sim ás grades, cada um oferecia ao grupo não uma rodada de cervejas, mas sim uma grade de cervejas, a dada altura tínhamos pelo menos umas três grades à nossa frente, e nem bem começávamos a beber uma garrafa, já nos punham outra na mão, a técnica para enfrentar aquele exagero alcoólico era beber deixando escorrer a cerveja pelo queixo abaixo e não pela garganta dentro. Éramos os únicos gringos naquela festa e foi bom ver a outra faceta de uma cidade que vive sobretudo dos turistas. E não vale tao pouco a pena descrever o estado das nossas cabeças no dia seguinte.

Os dias em Uyuni decorreram lentos e preguiçosos, foram 10 dias passados a actualizar sites e na tertúlia com o Antuco, bom vivâ, nortenho de olhos azuis doces, que decidiu aproveitar a sua reforma antecipada para percorrer o mundo na sua moto.

Penso que os nossos corpos precisavam de descanso e, sobretudo, de preparação mental para a próxima etapa que se antecipava dura e longa. Ao fim desses dias despedimo-nos do nosso amigo Antuco, e dos seus companheiros de etapa, uma família de alemães a viajar num camião da polícia, um Mercedes convertido em casa ambulante, e Carola, uma motociclista também alemã a viajar sozinha pelo continente Americano. Seguimos rumo ao Sudoeste Boliviano ao ritmo das nossas pedaladas, consideravelmente mais lentas.


De Uyuni a Quetena Chico – a aventura continua




Eu e o Nuno prontos para começar mais uma etapa da nossa grande aventura


Tivémos, uma vez mais, alguma dificuldade em encontrar gasolina para o MSR (fogão) e saímos tarde de Uyuni rumo a San Cristobal, a primeira aldeia do nosso percurso. A estrada, apesar de ser de terra batida, não apresentava grandes desníveis, e os lavadouros (efeito da erosão provocada sobretudo pelas grandes velocidades a que se deslocam os veículos todo terreno, comum nas estradas Bolivianas) eram suportáveis. Almoçámos pela última vez na borda do Salar de Uyuni, que contornamos nos primeiros quilómetros, e seguimos altiplano dentro. A paisagem à nossa volta era seca, a vegetação rasteira resistia estoicamente as investidas do vento. Acampamos na primeira noite, depois de 49 quilómetros percorridos, no meio das estrelas, da areia, do frio, do silêncio, da desolação. Esta paisagem não foi feita para ser habitada por seres humanos porque é demasiado hostil. Aqui não existem aspectos supérfluos, tudo é escasso, menos a vastidão e a dimensão. Chegámos ao fim do segundo dia, depois de pedalarmos cerca de 51 quilómetros até San Cristobal, aldeia que foi trasladada por completo incluindo a igreja jesuítica do século XVII. Nas profundezas desta aldeia foi descoberto um filão de prata e chumbo, que segundo estudos é o maior de toda a América e um dos maiores do mundo. Uma corporação multinacional canadiano-japonesa, em troca da exploração e criação desta mina, ofereceu ás populações locais não só postos de trabalho mas também um plano teoreticamente sustentável para o aproveitamento dos recursos turísticos criando o que denominaram de “Pueblos Autênticos”, num processo de revitalizaçao das aldeias circundantes já que delas provem grande parte da mão de obra necessária para a exploração da mina.


Sinalizaçao para os "Pueblos Autênticos", é interessante comentar que sinais de estrada sao raros em toda a Bolívia.


Prevê-se que dentro de 16 anos se limitem os recursos da mina e pretende-se dotar estas aldeias com infra-estruturas que permitam aos locais explorar os potenciais turísticos da região. Do ponto de vista humano esta mina é a luz no fim de um túnel escuro que ilumina as vidas das gentes do altiplano Boliviano. Porque do seu solo é pouco o alimento que podem extrair. Esta companhia proporciona-lhes um salário e condições de trabalho dignas. Contudo o impacto ambiental é grande, e é difícil calcular a contaminação que esta mina a céu aberto vai causar no futuro, a um ecossistema que enfrentando a dureza do que a rodeia e também tão frágil sob a acção humana. Suponho que o tempo o dirá.


A igreja Jesuíta de San Cristobal que foi trasladada e completamente restaurada

Kulpina K, mais um dos "Pueblos Autênticos" e as suas casas pintadas com cores berrantes como o amarelo, o bordeaux, o azul celeste

Passámos em rota pelos denominados “Pueblos Autênticos”, que são quatro: Villa Villa, San Cristobal, Kulpina K e Villa Alota. Na realidade não me pareceram muito autênticos, porque a autenticidade do altiplano é pobre e desolada feita de fachadas de adobe por pintar e ruas de pó e lixo. Nestas aldeias vimos casas arranjadas, pintadas com cores, certamente nunca antes vistas em nenhuma outra aldeia altiplanica, caixotes de lixo e nomes nas ruas. Pernoitamos em Villa Alota, o último “Pueblo Autêntico” e seguimos rumo a Villa Mar ou Mallku, como era originalmente conhecida.

Atravessando um pequeno riacho numa ponte peatonal feita de pedras, à saida de Villa Alota



Segundo a informação que recolhemos era a partir daqui o altiplano começava a revelar as suas peculiaridades paisagísticas. Subimos a nossa primeira montanha de forma lenta devido ao estado arenoso em que se encontrava a estrada, as calaminas (ou lavadouros) apareceram de novo. Começam a passar por nós os todo terreno dos tours, dentro deles os turistas surpreendidos que nos olhavam como se fossemos uma formação bizarra da paisagem, e deixando atrás de si uma nuvem de poeira que éramos obrigados a respirar.



A fantástica e irreal paisagem altiplânica e as primeiras formaçoes rochosasa contrastar com o recorte suave das montanhas circundantes.



Não os invejo. Se pedalar nestas paisagens é algo extremo que desafia o teu corpo e a tua determinação, ver o mundo a passar através de uma janela, sem o poder tocar ou sentir, prisioneiro dos horários e dos arranjos do tour que compraste, é algo que não me alicia minimamente, não gosto de me sentir parte da manada, sempre tive a alma um pouco rebelde.



Poeira e calaminas - a grande contribuiçao dos veículos todo terreno à nossa já dura aventura no altiplano



No cimo da montanha que subimos até aos 4117 metros começam a delinear-se as silhuetas de formações rochosas que dão textura ás encostas lisas e suaves das montanhas do altiplano. Parecem camadas de lava expostas a condições extremas climáticas, mas na realidade desconheço os processos que terão dado origem a estes gigantes silenciosos.



Pausa para almoço e para desfrutar as vistas sobre uma rocha de forma estranha, das milhares que nos acompanharam durante esta etapa

Formaçao rochosa no "Valle de las Rocas"



Entrámos numa espécie de vale, que é conhecido como “Valle de las Rocas”, e o que vi era tão surpreendente que foi difícil acreditar que fosse real: rochas altas erguendo-se aos céus, recortadas em formas bizarras, os seus tons castanho avermelhados e amarelados contrastando com o azul do céu e a luz do sol que baixava para iluminar a outra metade do globo terrestre. As sombras moviam-se lentas no chão arenoso como se fossem as almas destas pedras que parecia que se moviam à medida que o sol se ía. Nessa noite, depois de caminharmos aquele vale com as máquinas fotográficas tentando captar a magia daquele lugar, acampámos, protegidos do vento, entre estas rochas milenares e fizémos uma fogueira. O seu calor permitiu-nos olhar as estrelas e sentir a magia nocturna e fria daquele lugar.



Acampamento no "Valle de las Rocas", protegidos por uma parede de pedras e aquecidos por uma fogueira



O vento silvava e o frio mantia os sentidos despertos. O ser humano tem uma capacidade criativa surpreendente mas a linguagem da natureza, para os que têm o privilégio de chegar aos poucos lugares onde esta ainda não foi alterada, é surpreendentemente mais bonita e mais real do que qualquer coisa criada pelo homem.



No " Valle de las Rocas"



Chegámos a Villa Mar já de tarde, havia um ribeiro de águas cristalinas de margens congeladas. À entrada da aldeia, as poucas casas deste povoado estavam abrigadas por uma parede de rochas, continuação das formações que havíamos visto no dia anterior e que fizeram parte do cenário por onde havíamos pedalado todo o dia. Mallku é o nome original desta povoação mas quando a Bolivia perdeu o mar na Guerra do Pacifico mudaram o nome no saudosismo do mar perdido.



Chegada a Villa Mar, ou Mallku como é originalmente conhecida



Ficámos alojados numa pequena residencial à saída da aldeia perto do campo de futebol, a dona era uma cholita com duas filhas simpáticas e curiosas. Na manha seguinte olho pela janela do quarto e observo duas crianças brincando com um cachorrito pequeno e negro, despreocupadas e inocentes, capto com os meus olhos e memória aquele momento de pura simplicidade e sinto-me feliz por de alguma forma fazer parte dela.



Nuno passeando ao fim do dia pelas ruelas de Villa Mar



Na noite anterior havíamos conhecido uma turista francesa que viajava à volta do mundo e, como muitos milhares de turistas, fazendo um tour do altiplano, parecia incapaz de ver a beleza intrínseca das coisas, o único que via era o frio, o incómodo de acordar cedo para chegar aos locais previstos no pacote turístico que havia comprado, a antipatia das pessoas. Quão diferente era a minha experiência e quão diferente era a minha forma de sentir as coisas, a bicicleta como meio de transporte aproximava-me da realidade, permitia-me fazer parte dela e assimilá-la continuamente como se fosse uma extensão do meu ser.

Parecia que as formações rochosas se estendiam infinitamente por todo o sudoeste Boliviano, acampámos mais uma noite protegidos, do vento inclemente, pelas saliências protectoras e companheiras. O sobe e desce acentua-se e as noites são cada vez mais frias. A presença humana é quase inexistente salvo um jeep ou outro. Os efeitos da altitude começam a sentir-se no corpo. Por mais aclimatizado que se esteja á altitude, como nós estávamos, a capacidade de respirar vai-se reduzindo, e com as bicicletas carregadas muitas vezes a única alternativa é mesmo empurrar e parar a cada 5 minutos para ganhar fôlego.



O Nuno observando o ribeiro antes da sua queda



Atravessámos mais um ribeiro de águas gélidas. O peso na minha bicicleta está um pouco mal distribuído porque não tenho malas à frente, por vezes quando as rodas de trás ficam presas em alguma rocha ou irregularidade do piso tenho bastante dificuldade em segurar a bicicleta sobretudo se a estou a empurrar, como era o caso na travessia daquele ribeiro, onde a roda traseira ficou presa numas pedras e os meus braços não aguentaram o peso da parte traseira e a bicicleta caiu no ribeiro, a bolsa da frente, onde trago entre outras coisas, a minha maquina fotográfica, ficou perigosamente perto das águas. Pedi auxílio ao Nuno, mas quando me virei ele estava estatelado no chão rochoso. Tinha tentado sair da bicicleta para me ajudar, mas ficou preso nela, desiquilibrando-se. Fiquei surpreendida quando se levantou e confirmou que não tinha nada partido. Naquele desolo seria difícil encontrar auxílio, e penso que a natureza nos revelava mais uma vez o quão à sua mercê estávamos.

Chegada a Quetena Chico, ou quase...



Sinal anunciando a nossa chegada ao Parque Nacional Eduardo Avaroa que se caracteriza ecológicamente pelos extensos desertos gelados e pela Pradaria Altoandina semidesértica. Aí encontram-se lagunas salgadas de origem glacial, bofedales e turbeiras. Esta área protegida foi criada para proteger algumas espécies que estao em vias de extinçao nomeadamente a vicunha, o gato andino, o suri e as três espécies de flamengos que aí nidificam.


Chegámos à entrada da Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaroa por volta das quatro da tarde, onde nos cobraram 30 Bolivianos de entrada (cerca de 5 euros), prosseguimos na esperança de chegar ainda nesse dia a Quetena Chico, o guarda parque tinha-nos dito que em duas horas alcançaríamos a pequena povoação. Poucos quilómetros depois de termos passado a entrada do parque deparámo-nos com uma subida que nos levou quase uma hora a completar, a meio, não houve alternativa senão empurrar as bicicletas porque a inclinação era demasiado forte para o ar escasso que entrava nos nossos pulmões. A descida não foi menos dolorosa, do chão saiam pedras enormes e calaminas profundas e arenosas, descíamos quase tão lentamente como havíamos subido.


A dificíl subida depois da entrada no Parque, ou um treino para a subida ao Uturunco



Já o sol era meio círculo amarelo dividido na linha do horizonte quando chegámos a um rio com as margens congeladas e com uma profundidade mais acentuada do que o que estávamos habituados. Entre o dilema de avançar ou acampar, decidimos acampar. Não sabíamos a que distancia estávamos realmente de Quetena Chico e, sobretudo, o que aconteceria aos nossos pés depois da travessia daquelas águas gélidas.


Um rio profundo que se atrvessou no nosso caminho antes de chegarmos a Quetena Chico e que nos impediu de seguir nessa noite.



No dia seguinte despertámos com os primeiros raios de sol, mas ao contrário dos outros dias, não havia pressa, Quetena Chico estaria perto e podíamos dar-nos ao luxo de desfrutar um pequeno almoço preguiçoso ao som da fauna voante que por ali deambulava e aguardando que o sol aquecesse um pouco as águas do rio. Por volta das duas da tarde fizémos a travessia e chegámos finalmente ao destino que terminava a primeira fase desta etapa.



Durante o caminho tínhamos ficado com a impressão de que Quetena Chico era uma aldeia com alguma importância onde esperávamos encontrar mantimentos e alojamento para dar descanso ao corpo, mas o que nos esperava era uma aldeia triste, poeirenta, com telhados de chapa prateada; a igreja tinha escrito sobre a porta de entrada em letra negras bem visíveis “Dios es Amor”, deve ser então que Deus ame mais uns do que outros porque aquele povoado não é o resultado de um acto de amor senão a prova desesperada da resistência humana e da sua capacidade de sobreviver em ambientes que desafiam a própria vida.



Quetena Chico vista ao longe, uma aldeia desolada e poeirenta esquecida por Deus e pelo homem


Fomos rabiscando nas poucas lojas que existiam alguns víveres como leite em pó, pasta de carne, folhas de coca, massa e bolachas de água e sal, mas estes eram claramente insuficientes para o próximo desafio – a subida ao vulcão Uturunco, que tem uma estrada que sobe aos 5800 metros de altitude, considerada a estrada mais alta do mundo. Alojámo-nos no Hostal Condor, em frente ao Centro de Interpretação do Parque Eduardo Avaroa. A Dona Modesta e o Senhor Marcelino, donos do hostal informaram-nos que dentro de três dias chegaria uma flota (autocarro) com verduras e venderam-nos batatas, cebolas, cenouras e carne de lama da sua própria reserva para os dias em que aguardávamos pela dita flota. No final do segundo dia de espera ficaram alojados no hostal um casal de brasileiros Paulistas – a Didiana e o Jerônimo.



Dona Modesta, a filha, eu, o Senhor Marcelino e o filho pequeno, a Didiana e o Jerônimo em frente ao Hostal Condor em Quetena Chico (da esquerda para a direita)


Vinham ao altiplano num tour de luxo para celebrar o aniversario da Didiana e nos “alforges” traziam vinho, patê, queijo e uma série de outros ingredientes que amavelmente partilharam connosco num anoitecer frio aquecido pelo pequeno fogão a lenha e a boa companhia dos nossos quase conterrâneos. Falou-se da historia luso-brasileira, de viagens, contaram-se anedotas, mas o frio venceu-nos e por volta das 10 da noite fomos buscar calor debaixo dos cobertores das nossas camas. No dia seguinte, depois de uma visita ao centro de interpretação, ao qual fomos convidados pelos nossos amigos, despedimo-nos e o Jerônimo e a Didiana seguiram rumo ao Salar de Uyuni.

A subida do Uturunco em bicicleta – a vontade vence a montanha na estrada mais alta do mundo


O Vulcao Uturunco


A dita flota era um autocarro decrépito de vidros partidos estacionado a um canto da praça central. Tendo eu feito exactamente o mesmo percurso (de Uyuni a Quetena Chico) parecia-me um milagre que funcionasse. Ali fomos, já um pouco tarde, tentar encontrar verduras e alguma fruta, mas nada, a senhora que vendia os alimentos frescos não tinha vindo na flota. Vejo a expressão do Nuno a endurecer, eu sabia que ele ansiava a subida ao Uturunco, era um dos pontos altos da sua viagem, ele via esta etapa como uma autêntica expedição, um feito nunca antes alcançado – subir aos 5800 metros com as bicicletas carregadas, mas estávamos no altiplano, por nossa conta e risco, e o glamour desta ascensão, organizada por dois cicloturistas, era inexistente. Não teríamos carros de apoio, nem equipa jornalística a registar a nossa hercúlea subida. O nosso sucesso dependeria sobretudo da nossa adaptação ás circunstâncias e aos aspectos limitadores. A comida, pelos dias que durasse a nossa subida, seria uma massa horrorosa pastosa, com meia dúzia de batatas e cenouras, os poucos vegetais que conseguimos encontrar, alguns enlatados e leite em pó. Esses eram os factos. Depois do pânico do Nuno, das suas preocupações com a comida e em geral a nossa falta de preparação seguimos a meio da manha rumo ao topo do Uturunco. Deixámos tudo o que não necessitávamos no hostal e dissémos aos donos que estaríamos de volta dentro de quatro a cinco dias. Apesar de termos prescindido de grande parte das nossas coisas, as malas estavam extremamente carregadas, sobretudo as do Nuno. Carregávamos 15 litros de água e comida suficiente para uma semana, mas levávamos, sobretudo, muitas duvidas e muitas incertezas.

O fascínio da subida ou puro masoquismo?

Estávamos ainda no Peru quando o Nuno me falou que queria subir uma estrada na Bolívia que ia ate aos 5800 metros e que era a estrada mais alta do mundo. Na altura tinha-lhe dito peremptoriamente que não o acompanharia, mas à medida que fomos avançando rumo ao Sul fui-me imaginando a vencer mais um desafio e subir ate aos 5800 metros com a minha Marina (Marin Muirwoods). Admito que não tinha a menor noção do que isso pudesse implicar e penso que foi essa inocência que me fez atirar de cabeça na subida do grande vulcão semi adormecido.

A informação sobre este vulcão é quase inexistente, depois de buscas na internet ficámos a saber que uns franceses tinham conseguido levar as suas bicicletas aos 5800 metros numa expedição com carros de apoio. Seríamos provavelmente os primeiros loucos a tentar a subida com as bicicletas carregadas e em total autonomia. Não sabíamos quantos quilómetros estariam entre nós e o topo, ou o estado da estrada, e valeram-nos as indicações do senhor Marcelino, que levou o Nuno a uma colina em Quetena Chico e lhe indicou o caminho através das sombras e das formas da montanha que se viam desde ali.


Estrada rochosa na subida do Uturunco


Foi no "Valle de las Rocas" que avistamos pela primeira vez o grande colosso e à medida que avançávamos em direcção a Quetena Chico fomos observando em diferentes perspectivas as suas longas encostas, o branco dos seus dois cumes de onde se extraia o enxofre, actividade à qual se deve a existência da estrada. Ao longe, discerníamos as linhas marcadas nas suas vertentes e imaginávamos que seriam a estrada que iríamos percorrer. Comecei a sentir carinho, respeito e a desenvolver uma espécie de relação silenciosa quase íntima por aquela montanha, como se de um ser vivo se tratasse.


O Uturunco e o Soniquera vistos de Villa Mar ao anoitecer



No primeiro dia, depois de pedalarmos cerca de 15.3 quilómetros e termos subido dos 4150 aos 4477 metros, acampámos na base do Uturunco. A estrada era má com muitas pedras e areia que desequilibravam as bicicletas carregadas e os últimos quilómetros que percorremos nesse dia foram a empurrar.




O Nuno lutava com a sua carga, levava toda a comida, a maior parte da água, a tenda, o fogão, a gasolina, roupa e o saco de cama, e eu via que essa carga era excessiva para que ele pudesse desfrutar a subida, e se já estávamos a empurrar as bicicletas mal tínhamos começado a ascensão certamente não conseguiríamos alcançar o topo. Adormecemos cheios de dúvidas e desanimados.

As estrada pedregosa e inclinada que tivémos que subir para alcançar o topo

No dia seguinte o Nuno passou-me alguma da água que trazia mas a sua carga continuava extremamente pesada. Tentámos montar as burras só que a combinação do caminho pedregoso, a inclinação, a falta de ar que nos obrigava a desmontar a cada minuto eram torturantes. Depois de 15 minutos, onde provavelmente avançamos 100 metros, o Nuno pergunta-me o que devíamos fazer. Ainda não sei muito bem de onde veio a determinação mas respondi-lhe que avançávamos um pouco mais e já veríamos. Os nossos corpos foram-se habituando ao caminho pedregoso e ás paragens a cada 100 metros para recuperar o fôlego e fomos avançando, muito lentamente. Eu ia à frente marcando o passo, o Nuno, a cerca de 20 metros atrás. Vistos do céu parecíamos dois pontos coordenados na encosta solitária, avançando e parando como os ponteiros de um relógio.


Ao fim do segundo dia, completamente esgotados, acampamos numa estrada que dava acesso à estrada principal, não havia alternativa já que nas encostas de uma montanha os únicos espaços relativamente nivelados onde se podem montar tendas são precisamente as estradas. Nessa noite tive que forçar a ingestão da massa com molho de tomate, apesar de a cada colherada me virem vómitos à boca. Desde pequena que não suporto a consistência de alimentos pastosos como cerelac, ou nestum, e aquela massa depois de alguns minutos ao lume transformava-se numa mistela disforme. Mas não havia alternativa, tinha que dar alimento ao corpo depois do esforço daquele dia.

Havíamos feito nove quilómetros e subido 582 metros, acampando a 5138 metros sobre o nível do mar, e os números podem não dizer muito, mas qualquer pessoa que tenha estado acima dos 4500 metros sabe que o esforço físico triplica, todos os movimentos são feitos em câmara lenta e a respiração torna-se ofegante. Não sabíamos se estávamos no caminho certo e sentia-mo-nos mais isolados do que nunca, em dois dias de subida não tínhamos avistado uma única alma. O que e que andávamos ali a fazer? Decidimos adormecer e decidir se continuávamos a ascensão no dia seguinte.

Um momento de felicidade, quando atingi pela primeira vez na minha vida os 5000 metros sob o nível do mar

Acordei com o ruído do motor de um carro. Pensava que estava a alucinar, o que faria ali um carro, pensei. Abri o fecho da tenda e confirmo que realmente era um carro, um todo o terreno de um tour. Haviam-nos dito que havia um tour esporádico à base do vulcão já que daí se podia subir ao topo até aos 6000 metros. Já era de manha, despertei o Nuno, que dormia como uma pedra, fizémos o pequeno almoço e enquanto comíamos passaram mais dois jeeps, olhámos um para o outro e pensámos que a estrada mais desolada da Bolívia se havia convertido numa autêntica auto-estrada de montanha. Decidimos avançar, até porque a nossa água se estava a acabar e necessitávamos que nos confirmassem que havia água no topo ou que nos dessem alguma.

O primeiro carro passou por nós já na sua descida e confirmou que estávamos no caminho certo a uns 4 ou 5 quilómetros, deram-nos alguma água e seguiram montanha abaixo. Seguimos mais animados, embora a estrada começasse a ter inclinações que nem eu nem o Nuno acreditávamos serem lógicas ou possíveis aquelas altitudes (algumas a mais de 25 porcento). Ia eu à frente quando os outros dois jeeps passam, pedi-lhes mais água. Pude ver a cara dos passageiros, as suas bocas abertas em espanto. De repente tenho as mãos cheias de maças, amendoins, chocolates, bolachas e água. Era uma família de Mexicanos – o filho, o pai e o avo, que tinham acabado de subir ao topo do Uturunco aos 6000 metros, e quando vi o avô com de mais de 75 anos de idade, quem ficou com a boca aberta fui eu. Saíram dos carros para nos saudar, tirar fotos e fazer mais perguntas do que aquelas a que podíamos responder.


A familía Zambrano e os seus guias de montanha



Era a família Zambrano e o pai Oscar, creio, contou-nos a anedota de um tipo que vergastava o corpo para sentir o quão bem lhe sabia quando o parava de fazer. A risada foi geral. Seríamos nos também masoquistas em busca do prazer depois da dôr? Em parte, julgo que sim, mas há uma espécie de sentimento, algo místico, difícil de explicar, intrínseco ao facto de se superarem expectativas físicas e psicológicas. Os Zambrano e o seu guia de montanha explicaram-nos também que seria melhor não acamparmos no fim da estrada porque haviam muitas fumarolas e que os seus fumos, sobretudo com os ventos fortes que se faziam sentir, podiam ser tóxicos, e tão pouco aproveitar a água do parco gelo que existia nas encostas, pelas mesmas razoes. Despedimo-nos e seguimos, nós, montanha acima e bastante motivados e os Zambrano, montanha abaixo.


As coisas não melhoraram, as inclinações e o estado da estrada eram verdadeiramente inacreditáveis, o dia foi passado na sua totalidade a empurrar as bicicletas. Ao fim do dia, no meio de um vento forte assustador chegámos aos 5702 metros de altitude, entre o precipício e a montanha, tínhamos que acampar mas naquela vertente o vento era tão forte e haviam tantas pedras no caminho que tivemos medo de acordar soterrados, sentiam-se também já os fumos sulfurosos saindo das encostas. Voltámos para trás, na encosta que estava protegida pelo vento a 5688 metros e ali montámos a tenda.


Cozinhámos mais uma pasta arrepiante e o Nuno cozeu uns ovos, só que quando os abriu veio um cheiro tão forte a ovos podres que os deitou fora. Ao fim do dia percebemos que não eram os ovos que estavam podres mas sim o cheiro a enxofre que o vento trazia a cada rajada. Na manha seguinte seguimos para chegar finalmente ao nosso destino. Podémos pedalar alguns metros, já que a estrada era relativamente isenta de inclinações fortes. E por volta das 11 da manha ali estávamos, completamente ofegantes, no meio dos dois cerros do mítico Uturunco, havíamos pedalado até aos 5800 metros na estrada mais alta do mundo!


Olhava o topo e estava determinada a subir os duzentos metros que faltavam para atingir os 6000 metros. O Uturunco é conhecido como os 6000 metros mais fáceis. Tive que ser bastante persistente para convencer o Nuno a caompanhar-me até ao topo, porque estava resolvida a ir até ao fim, sózinha se fosse necessário. Relutante e cansado o Nuno decidiu acompanhar-me e lentamente, passo a passo, atingimos o topo do Uturunco.

Autoretrato, um sorriso autêntico depois de atingir com a minha bicicleta os 5800 metros


O descanso das burras depois da árdua subida.

É difícil descrever a sensação que se sente estando no topo de uma montanha acima dos 6000 metros. As vistas são impressionantes, mas na realidade, à medida que vais ascendendo vais também tendo a oportunidade de as desfrutar. É algo mais, é uma alegria que te invade o corpo e se espalha por todas as células, sentes como se tu e a natureza fossem um só, de que és capaz de fazer tudo, de que nao existem impossíveis ou obstáculos...


Dois cicloturistas loucos e as suas burras aos 5800 metros.

Depois de tantas dúvidas e tantos momentos em que quase desistíamos, ali estávamos – no topo, e havíamos alcançado a nossa meta devido ao trabalho de equipa, de nos termos apoiado um ao outro nos momentos certos, sentíamos que depois de tantas horas juntos a pedalar rumo ao sul era bom compartirmos aquela vitória e sentir que ela se devia à presença de cada um na vida do outro. Nesse dia fizémos a descida até Quetena Chico onde chegámos já de noite e exaustos. Foi um downhill torturante, o estado da estrada era simplesmente deplorável, mas suponho que durante a subida, como havíamos empurrado as bicicletas a maior parte do tempo, não nos tínhamos apercebido do estado real daquela estrada, e da quão inadequada era para ciclismo.




Na noite em que regressámos fomos presenteados por esta magniíca paisagem - a lua cheia iluminando o Uturunco

De Quetena Chico à Laguna Verde – vencidos pelo altiplano

Descansámos um dia em Quetena Chico e no dia seguinte partimos. Não iríamos aos Geizeres “Sol de la Manana” nem à Laguna Colorada, seguiríamos pelo caminho mais breve em direcção à Laguna Verde já perto da fronteira com o Chile onde iríamos em busca das comodidades que não existem no altiplano.

Passámos por Quetena Grande a 10 quilómetros de Quetena Chico e o estado da estrada começou a piorar, na combinação já previsível de areia, pedras, calaminas, vento e subida.



Estava cansada, era difícil pedalar, o vento empurrava-me para trás, e as pedras do caminho desequilibravam-me a bicicleta que estava demasiado pesada e de repente as lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto até se transformarem em soluços convulsivos. Claramente entendi que aquela paisagem não nos daria tréguas, tínhamos subido o Uturunco, mas isso não significaria que os desafios tivessem terminado. Sentia raiva e frustração e uma pequenez indescritível, olhava a minha volta e no silêncio que me rodeava via o quão hostil era aquele meio, o frio, o vento, as rochas e as pedras. Queria desistir, queria meter-me num carro e nunca mais voltar ali. Mas como? No total isolamento? Seguimos empurrando as bicicletas e acampámos a meio de uma subida. No dia seguinte acordei mais animada, mas as inclinações da subida eram tão surreais que os dois tivémos que empurrar uma bicicleta de cada vez.





Que terra era esta? Como seria possível existirem seres humanos no meio daquele deserto de pedras, vulcões e lagunas salgadas? Porque estava ali? O que buscava? O que queria provar a mim e aos outros?





Nesse dia, depois de passarmos a Laguna Colpa de onde se extrai o boro (boranotrocalcita) que se utiliza para a fabricação de esmaltes, cerâmicas e de shampoo segundo nos contaram também, acampámos às 4 da tarde por que se tinha levantado um vento tão forte que era literalmente impossível pedalar. Montámos a tenda o melhor que pudemos, mas não havia abrigo do vento, pusemos pedras a toda a volta e aguardámos que a tenda não voasse.


Laguna Colpa



Essa noite não dormi bem porque os som do vento a abanar a tenda era assustador. Já de manha o vento continuava muito forte e a tenda que tinha aguentado heroicamente durante a noite, partiu e como um animal inerte, desfaleceu no chão arenoso. Acabava ali a nossa aventura altiplanica. Sem tenda e sem possibilidade de a arranjar era impossível continuar. Voltamos à Laguna Colpa e aí, convencemos a muito custo, o senhor responsável pela exploração de boro a levar-nos até à Laguna Verde, onde havia alojamento e que estava a cerca de 20 quilómetros da fronteira com o Chile.



A tenda rendida aos ventos ciclónicos



Estávamos tristes e sentia-mo-nos derrotados. Ver o altiplano passar diante dos nossos olhos sem o poder sentir, sem poder fazer parte dele...mas tivémos que nos render, a natureza suprema sempre terá a palavra final.

Iríamos para o Chile no dia seguinte. Do hostal, protegidos do vento e do frio, víamos na distancia a Laguna Verde, que nesta época do ano não tinha os tons de verde esmeralda pelos quais é conhecida. A tarde estava triste e ventosa.



A Laguna Verde sem o verde e quase sem água.



As próximas pedaladas levar-nos-iam ao Chile a à Argentina – em breve na próxima crónica.

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